Os sacerdotes de Azeroth, desde o lançamento do WoW, sempre foram uma classe mergulhada em dicotomia: usam tanto a Luz Sagrada quanto a Sombra, seu oposto. Em uma especialização, podem ser seguidores fiéis da Luz, enquanto que em outra especialização, usam a Sombra como sua fonte principal de poder. Compare isso com os paladinos, por exemplo – que originalmente eram uma ordem de guerreiros treinados por sacerdotes para usar a Luz ofensivamente – a única “escola” de magia que eles usam é a Luz.

Neste artigo quero comentar um pouco sobre o lado sombrio dos sacerdotes, especificamente sobre a história (lore) por trás disso.

Para falar da Sombra seria interessante eu falar da Luz Sagrada primeiro, mas para deixar este artigo conciso, eu vou direto à Sombra. Comentarei sobre a Luz em outra ocasião.

Sombra x Luz

O primeiro contato dos sacerdotes de Azeroth com a Sombra foi durante a primeira guerra , retratada no jogo Warcraft: Orcs & Humans. Os exércitos orcs atacaram a nação humana de Ventobravo, e junto com os guerreiros orcs haviam necrolytes (“necrólitos”?) que faziam uso de magias sombrias e podiam tornar os corpos dos guerreiros mortos em mortos-vivos.

Isso era um tipo de magia desconhecido em Azeroth. Natalie Seline, uma bispa de Lordaeron, começou a pesquisar aquela estranha forma de magia depois da guerra. Sua motivação original era entender como as magias sombrias funcionavam, a fim de poder lutar melhor contra ela no futuro. Mas conforme seus estudos avançavam, ela começou a entender que aquelas energias sombrias existiam no universo como um oposto às energias da luz que ela já conhecia. Ela formou então a concepção de que seria necessário buscar um equilíbrio no uso das energias da luz e da sombra.

A Luz é associada a sentimentos positivos – esperança, coragem, conforto. As habilidades usadas pelos praticantes de magia sombria manifestam o oposto: desespero, dúvida, pânico (veja Grito Psíquico por exemplo). Num sentido poético, pode-se dizer que as emoções emanadas pela Luz vêm do “coração”, enquanto que as emoções manipuladas pela Sombra são baseadas na lógica da sobrevivência, e portanto afetam a “mente”. Por isso algumas magias de sacerdotes sombra têm o nome “Mental”. (fonte deste parágrafo)

Porém, após a morte da bispa Natalie, seus livros foram trancados em Dalaran pelos magos do Kirin Tor. Essa filosofia ficou esquecida até o surgimento dos Renegados.

Culto da Sombra Esquecida

O “Cult of Forgotten Shadow” foi criado através da redescoberta dos ensinamentos de Natalie Seline pelos sacerdotes Renegados, após a ocupação e mudança de Lordaeron em Cidade Baixa. Apesar de ser uma organização primariamente composta por Renegados ela é aberta a membros de outras raças, inclusive da Aliança.

Quando os Renegados acordaram de seu domínio mental do Rei Lich Arthas, eles descobriram que, além de terem que enfrentar o resto de sua existência como cadáveres reanimados, eles tinham também perdido todo e qualquer contato com a Luz Sagrada, já que a Luz machuca qualquer morto-vivo. Isso foi mais impactante para os Renegados que haviam sido sacerdotes da Luz quando vivos. Aliás isso é um dos fatores que ajudou na escolha do nome de sua “facção” (Renegado em inglês é Forsaken, que pode também ser traduzido como Abandonado). Eles se sentiram abandonados pelo mundo, e no caso dos sacerdotes, abandonados pela Luz.

Isso levou à criação de uma nova filosofia, pois os sacerdotes Renegados continuaram sendo sacerdotes, mas mudaram o foco de sua fé da Luz para eles mesmos. O culto da Luz Sagrada segue três virtudes básicas: Respeito, Tenacidade, e Compaixão. O culto da Sombra Esquecida substitui a terceira virtude, Compaixão, por Poder. Talvez a melhor descrição da filosofia por trás deste novo culto seja melhor expressa pelas palavras do Clérigo das Trevas Duesten, que recebe os personagens Sacerdotes Renegados recém-criados com uma missão de nível 3, e durante esta missão ele diz:

Ah, quer dizer que entre fogo, peste, revoltas e coisas bem piores, mais um “fiel” bate à minha porta. Bom, seja bem-vindo, sacerdote. Permita-me explicar por um momento uma coisa ou outra antes de você decidir se é hora de seguir em frente: a Luz Sagrada não mais está ao seu lado, os espíritos dos seus antepassados são contos antigos e as criaturas do Éter já não te querem mais.

Conseguiu me entender até agora?

Há apenas uma coisa que você precisa saber: nós sobrevivemos a tudo isso sozinhos. […]

Um sacerdote Renegado é uma fera peculiar, ele segue um caminho não muito comum.

Seus rituais sombrios não vêm da Luz, então ele procura fontes mais sinistras.

Não só o mundo nos esqueceu, [nome do jogador]… Parece que a Luz nos deixou também. É como as coisas são. No entanto… continuamos poderosos. […]

Sombra e as outras raças

Quando o WoW foi originalmente lançado, apenas estas raças podiam ser sacerdotes: humanos, anões e elfos noturnos na Aliança, e trolls e renegados na Horda.

Pela história do jogo (lore), as três raças da Aliança deveriam ser apenas sacerdotes Sagrados e Disciplina, e as duas raças da Horda deveriam ser apenas sacerdotes Sombra. Humanos e anões seguem a igreja da Luz Sagrada, de acordo com o lore, enquanto os sacerdotes elfos noturnos seguem a deusa Elune, que lida com aspectos da luz somente. Os sacerdotes trolls são um caso especial; eles poderiam ser considerados sacerdotes vudu. Os renegados, como já foi exposto, se sentiram abandonados pela Luz e portanto começaram a usar apenas a Sombra.

Mas na prática, dentro do jogo, não é isso que se vê: desde que o jogo foi lançado pode-se criar um sacerdote humano da Sombra, bem como um sacerdote Sagrado troll ou renegado. Isso porque a Blizzard optou por não deixar o lore afetar o gameplay; algumas coisas na história do jogo são ignoradas a fim de permitir mais liberdade aos jogadores.

Com o passar do tempo foram criadas algumas “desculpas” para a existência de outros tipos de sacerdote dentre as diferentes raças; por exemplo pode-se justificar sacerdotes sagrados trolls através da história de Zabra Hexx. No caso dos renegados, diz-se que eles podem, sim, usar a Luz, mas ela os machuca a cada vez que é invocada. Portanto um sacerdote renegado que usa a Luz para curar seus companheiros está suportando dor, cada vez que lança uma magia sagrada, a fim de poder ajudar seu grupo.

O novo Sombra

O que nos traz de volta ao ponto original da conversa. Luz e Sombra são energias opostas, mas sacerdotes podem fazer uso de ambas. A sombra foi descoberta originalmente como antítese da luz, e a classe sacerdote foi originalmente concebida como sendo capaz de usar essas duas energias opostas. Pelo menos essa tem sido a definição de um sacerdote sombra, até agora.

No Legion a Blizzard adaptou as três especializações conforme sua orientação pela Luz e Sombra. Sacerdotes sagrados usarão apenas magias de luz (com pequenas exceções; por exemplo Dominar Mente tecnicamente é uma magia sombria, mas será utilizada por sagrado). Sacerdotes sombra usarão magias de sombra, e disciplina será a spec do “equilíbrio”, usando ambas magias de luz e de sombra, e alternadamente focando entre curas diretas e em atacar inimigos.

Com essas mudanças a spec de sombra foi bastante retrabalhada. Vejamos rapidamente como esta spec mudou através das expansões: originalmente muitas das magias de sombra faziam referência à mente, como dito antes – Açoite Mental, Impacto Mental, Aguilhão Mental, dentre outras. Com o passar do tempo, outras magias foram sendo adicionadas ao repertório de sombra que faziam referência aos “deuses antigos”, os old gods: Tentáculos do Caos, Entropia do Caos, Deslocamento Caótico. A referência aqui é ao caos (void, no original; note que a Blizzard optou por traduzir void como caos, mas também poderia ser traduzida como vazio) palavra geralmente associada aos old gods. Isso sempre gerou uma certa controvérsia: até que ponto magias sombrias têm relação com os deuses antigos? É uma coisa que eles utilizam, ou faz parte da natureza deles? Sombra e caos são a mesma coisa? Se a resposta destas duas últimas perguntas é sim, então até que ponto os sacerdotes sombra estão se expondo aos deuses antigos, e até que ponto eles podem fazer isso sem serem corrompidos ou usados pelo próprio poder que usam?

Voltemos ao Legion. Nessa expansão sombra está claramente associado aos old gods, a partir do próprio artefato: Xal’atath, Blade of the Black Empire. A descrição dessa adaga já diz: “Xal’atath tem uma mente própria. Ignore seus sussurros enlouquecedores. Não confie nas mentiras que ela tece. Tire dela o que precisar, mas lembre-se sempre que a presença sombria em sua lâmina não é sua aliada.”

Este artigo do site Blizzard Watch tem alguns comentários interessantes sobre este artefato, a história por trás dele, e considerações sobre o que isso quer dizer para os sacerdotes (algumas partes abaixo são tradução minha do artigo):

Esta adaga terrível foi feita com a garra de um Deus Antigo éons atrás, e sacerdotes sombrios a usavam para sacrifícios rituais durante o ápice do Império Negro. Após a queda dos Deuses Antigos, Xal’atath foi escondida pelo culto. Ela tem reaparecido de tempos em tempos através do curso da história, inevitavelmente associada com algum ritual ou desastre horrível. A lâmina tem vontade própria: ela usa energias caóticas poderosas e mágicas mentais para distorcer tudo ao seu redor com algum propósito nefário.

Quando as prévias de classe do Legion saíram, os sacerdotes sombra finalmente foram bem definidos com relação aos poderes que usam: magia caótica. O mesmo tipo de magia caótica associada aos deuses antigos. Os sacerdotes sombra usarão como arma uma adaga que foi feita da garra de um deus antigo; isso ao mesmo tempo traz uma perspectiva interessante e é uma péssima ideia. Lembram-se do que aconteceu com um certo chefe guerreiro que resolveu libertar o coração de um deus antigo presumidamente morto? Pois é. Sacerdotes sombra irão mexer com o tipo de mágica que pode transformá-los de mestres da sombra em lunáticos balbuciantes.

Mas aqui está a parte estranha disso tudo: agora então temos definido que sacerdotes sombra lidam com magia caótica. Quando foi a última vez que ouvimos falar sobre magia caótica? Nas missões finais do Vale da Lua Sombria, para quem jogou Warlords of Draenor como aliança; esse era o tipo de magia que emanava de K’ara, o Naaru ferido que entrou no estado caótico do ciclo de vida dos Naaru. Pense nisso um pouco. O ciclo de vida natural dos Naaru envolve entrar num estado caótico. O Caos é magia similar à que encontramos nos deuses antigos. Em Azeroth, Cho’gall queria ressuscitar C’thun, o deus antigo a quem resolveu servir. Em Draenor, Cho’gall queria sugar o poder do Naaru moribundo K’ure, chegando ao ponto de acelerar o ciclo do Naaru para que ele entrasse no estado caótico mais rápido. Começou a notar os paralelos perturbadores?

Forma caótica

Isso fica ainda mais evidente com a nova mecânica de jogo dos sacerdotes sombra: a forma caótica. Nós passaremos a usar insanidade como nosso recurso – e note que insanidade é, novamente, uma temática fortemente associada aos deuses antigos, que são capazes de enlouquecer mortais (e até dragões aspectos) com seus sussurros e manipulações mentais. Mais ainda: ao acumular insanidade suficiente, passaremos de forma de sombra para forma caótica. Ou seja, o sacerdote vai ficando mais e mais corrompido pelo caos, até o ponto de surgirem tentáculos em seu corpo. Essa mecânica de jogo se baseia bastante na nova definição da história da spec – o sacerdote está usando o poder caótico, ou o poder caótico está usando o sacerdote?

Este vídeo abaixo mostra como está a forma caótica no momento, enquanto ainda estamos no alfa do Legion:

Conclusão

Originalmente o lore do jogo definia magias sombrias apenas como o oposto das magias de luz. Com o tempo, à medida em que a história dos deuses antigos foi se desenrolando e ganhando mais detalhes, as magias sombrias foram aos poucos sendo associadas a esses deuses, e portanto com magias caóticas. No entanto, embora sombra e caos se parecessem bastante, sempre pareceu haver alguma diferença entre ambas.

O rumo que a especialização de sacerdotes sombra está tomando no Legion, porém, parece associar sombra e caos de forma bastante próxima, isso se não forem exatamente a mesma coisa. Isso dá aos sacerdotes sombra possibilidades interessantes em termos de história. Isso também pode significar que, assim como os bruxos, os sacerdotes sombra estão “brincando com fogo”, se vocês me entendem.